12 de maio de 2008

Mulher no espelho

“Minha história desprendeu-se de mim: de repente, perco o equilíbrio como alguém que perdeu seu caminho e, entre passado e futuro, escapuliu do tempo. (...) O pé se levanta hesitante para dar um passo. Em que direção irá? Não importa, porque aquele que dará o passo não serei eu, será um outro.” As frases são de Imre Kertész, confrontado com o peso dos anos em Eu, um Outro.

E eu? De cabelos grisalhos serei outra? Mudarei de identidade? O que será da menina e das mulheres que já fui? Como conciliar o tempo que passa e a identidade que perdura?

Em Being No One, o filósofo Thomas Metzinger busca uma explicação para a consciência de si mesmo e desenvolve uma teoria da subjetividade: a identidade é uma relação. A mais sutil de todas. A relação na qual cada um se defronta consigo mesmo. Cada um de nós é um sistema que processa informações à medida que o tempo passa. Como boa parte da informação sobre nós mesmos se mantém invariante, surge a experiência de uma identidade transtemporal - a sensação de ser a mesma pessoa através do tempo.

Você já pensou o que seria não reconhecer seu próprio rosto no espelho? Uma hemorragia circunscrita a certa área do cérebro pode produzir exatamente esse efeito. Metzinger relata: “Emily contemplava sua própria face no espelho e comentava que a mulher ali refletida deveria ser ela, porque ela ali se encontrava: bem em frente ao espelho. Mas era incapaz de reconhecer seu próprio rosto. Apenas acreditava que a imagem era a dela, por causa das circunstâncias que tornavam impossível que o rosto fosse de outra pessoa.”

Pessoas que sofrem de agnosia, embora não tenham as funções perceptivas perturbadas, nem diminuídas suas capacidades cognitivas, tornam-se incapazes de captar o significado de certas impressões conscientes. No caso de Emily, ela era incapaz de reconhecer a própria imagem, mas reconhecia a sua deficiência.

Pior do que a agnosia é perder a capacidade de perceber a deficiência da qual se sofre. O caso clássico é a síndrome de Anton, negação da própria cegueira. Pacientes que sofrem de cegueira cortical, depois de um ferimento bilateral dos lóbulos occipitais, não processam informações visuais. Embora manifestem todos os sintomas da cegueira e esbarrem em qualquer obstáculo, falam e agem como se não tivessem consciência do desaparecimento de seu mundo visual e negam qualquer déficit funcional na sua habilidade de enxergar.

Em menor grau, existem situações em que qualquer um de nós é incapaz de incorporar algumas intuições a seu próprio respeito e de experimentar essa incapacidade conscientemente. Podemos ter crenças falsas a nosso respeito - e essas crenças podem perdurar sem que sejamos capazes de reconhecer que isso ocorre.

Surpreendente é uma desordem de identidade que, no terreno lógico, parece uma impossibilidade: a de um sujeito consciente negar de forma verídica sua própria existência. Assim faz aquele que sofre do “delírio da negação” ou síndrome de Cotard. Metzinger cita um estudo de cem casos, em que 86% dos pacientes negavam a existência do próprio corpo e 69% afirmavam não existir. Um paciente pediu para ser enterrado porque, dizia ele, tinha morrido e já era um cadáver com mau cheiro.

Trata-se de um fenômeno que Descartes - e filósofos na tradição da teorização a priori sobre a mente humana - não poderiam conceber. Mas como Goethe já disse, “a teoria é cinzenta, enquanto verde é a cor da árvore preciosa de nossa vida interior”.

Mas voltemos ao problema da identidade e a meus cabelos brancos. Durante 15 anos, a cada seis meses eu tomava a decisão firme e inabalável de deixar de pintar os cabelos. Em 20 dias, as raízes grisalhas em volta da testa estavam visíveis. Em menos de um mês, um convite para uma palestra era suficiente para me levar de volta ao salão e pintar os cabelos. Entre os cabelos grisalhos e eu se interpunham a vaidade e a pressão social. Para a brasileira é tão difícil deixar visíveis os cabelos brancos quanto o é para a mulher no mundo árabe deixar de usar o véu islâmico.

Hoje, firme na decisão tomada há alguns meses de abandonar a tinta dos cabelos, defronto-me com outra dificuldade. À vaidade ofendida se soma a consciência dos anos. “O processo de atualização da consciência de si pode ser um processo demorado”, diz Metzinger ao comentar o tempo necessário ao paciente que sofre da síndrome de Anton para aceitar que ficou cego. Se tivesse deixado os cabelos se tornarem grisalhos aos pouquinhos, sem pintá-los, eu teria tido tempo de me acostumar ao meu novo eu.

Agora, quando me olho no espelho, lembro da Emily no livro de Metzinger. Sei que a mulher no espelho sou eu, mas minha própria imagem interior ainda não se ajustou à imagem que ali vejo refletida. Escuto a voz de Cecília Meireles: “Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil:/ - Em que espelho ficou perdida a minha face?” Mas a poesia não esconde o decreto dos cabelos brancos: o tempo corre.

Alguém (não me perguntem quem, pois não me lembro) disse que a velhice é um momento de graça entre a vida e a morte. Acho que assim deve ser para quem teve o dom de amadurecer e chega aos 60 anos sem problemas de saúde e livre da ansiedade que, durante a infância e a vida adulta, nos força a mil e um malabarismos para ganhar o amor dos outros.

Digo 60 porque é essa a idade a partir da qual a lei em São Paulo nos permite furar as filas do correio, do cinema ou do banco, para gozar de atendimento prioritário. Mas 60 é um número arbitrário. Há quem alcance sua liberdade antes disso, quem a conheça depois dos 80 e quem nunca descubra a alegria de se sentir dono de si mesmo, livre das amarras artificiais que nos impedem de olhar de frente esta coisa indecifrável e breve que é a vida.

Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV
Site: www.elianacardoso.com

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